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A incomensurável dança da psique: reflexões sobre a alma, o algoritmo e a essência da cura humana

Em um tempo onde a inteligência artificial (IA) promete redefinir os contornos de nossa existência, dos lares às fábricas, das finanças à medicina, somos compelidos a um questionamento fundamental: qual o lugar da máquina no intrincado e profundamente humano universo da saúde mental? Será que algoritmos, por mais sofisticados que se tornem, podem realmente adentrar os labirintos da alma e guiar-nos à cura? Este ensaio propõe uma jornada reflexiva, ancorada na psicanálise, para argumentar que a essência da terapia e da transformação psíquica reside em uma dimensão irredutivelmente humana, inacessível ao frio cálculo algorítmico.   A pedra angular dessa distinção reside na concepção freudiana do inconsciente. Não é um mero depósito de dados ocultos, mas um caldeirão dinâmico de desejos, fantasmas, traumas e representações, estruturado por uma lógica que desafia a linearidade e a objetificação. A IA, em sua essência, é um processador de informações; ela opera com padrões, probabilidad...
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A tragédia da liminaridade e o desvelar do inquietante: a criatura de Frankenstein entre mundos e psiques

A criatura concebida por Victor Frankenstein ultrapassa a imagem simplista de um “monstro” ou de um “humano artificial”. Ela encarna um dos dilemas existenciais mais pungentes da literatura: o de habitar uma condição liminar. Não pertence ao mundo dos homens, que a temem e a rejeitam, tampouco ao mundo dos monstros, do qual seria a única habitante. Sua constituição feita de “pedaços de muitos” não é apenas uma descrição anatômica, mas uma metáfora radical para sua identidade fragmentada e para sua incessante busca por um lugar no universo. Nessa chave, a psicanálise ilumina camadas mais profundas de sua tragédia, revelando a experiência da alteridade, da exclusão e da impossibilidade de simbolizar plenamente a própria origem. Desde o seu “nascimento”, a criatura é um ser sem categoria. Sua colagem heterogênea desafia as noções de unidade, filiação e origem natural. Ao mesmo tempo, ela pensa, sente e aprende, aspirando à conexão, ao amor e à aceitação — desejos profundamente humanos. Ma...

O que é "cura" para a psicanálise? Um convite à ética da singularidade

A questão da "cura" em psicanálise é um dos pontos mais sensíveis e frequentemente mal compreendidos do campo. Longe de se alinhar à acepção médica que concebe a cura como a erradicação de uma patologia e o retorno a um estado de "normalidade" predefinida, a psicanálise propõe uma transformação estrutural da posição subjetiva do analisando frente ao seu mal-estar, ao seu desejo e à própria contingência da existência. Não se trata de uma supressão de sintomas, mas de uma reconfiguração da economia psíquica que os produziu. 1. As raízes freudianas: do sintoma à resignificação Para Sigmund Freud, o sintoma neurótico é uma formação de compromisso, um retorno do recalcado, uma tentativa do aparelho psíquico de dar conta de um conflito inconsciente insolúvel. Ele é um vestígio, uma representação simbólica de um desejo ou de uma vivência traumática que não pôde ser integrada. A meta da análise freudiana, portanto, não era simplesmente "eliminar" o sintoma, mas si...

Groot, o inconsciente e a criação de mundos

Dias atrás, uma analisante caiu na gargalhada quando falei que coloquei o Groot no divã para que, a partir da análise, ele pudesse vir a ser ele mesmo, sem entrar em crise por não se parecer nem com as árvores da Terra, nem com os seres humanos. A figura de Groot, o Flora Colossus que só fala “Eu sou Groot”, transcende o universo Marvel para se tornar uma metáfora visceral do inconsciente, não como um depósito de conteúdos reprimidos, mas como um processo gerador de mundos. Através das lentes dos psicanalistas contemporâneos Christopher Bollas, Thomas Ogden e Antonino Ferro, podemos escutar na jornada de Groot um eco profundo do trabalho de transformação psíquica que ocorre na análise. Christopher Bollas e o "self idiomático" de Groot: a essência que insiste em brotar Para Christopher Bollas, cada sujeito possui um “self idiomático” – uma assinatura psíquica única e inefável, uma espécie de destino estético que busca se expressar no mundo. O sintoma, nessa perspectiva, é muit...

O mal-estar na (super)modernidade: a psicanálise diante do sujeito hiperconectado e esvaziado

Se Freud escreveu sobre o mal-estar na civilização diante do custo pulsional imposto pela cultura do século XX, os psicanalistas contemporâneos se debruçam sobre um novo paradoxo: o sujeito do século XXI é simultaneamente hiperconectado e profundamente solitário, inundado de signos de gozo e, no entanto, esvaziado de desejo. Como a clínica psicanalítica, herdeira de Freud e Lacan, responde a esse novo cenário? A tirania do ideal e a fragmentação do sujeito Vivemos sob a égide do que o psicanalista Christian Dunker denominou como "o ideal de performatividade". Este imperativo social exige que sejamos sempre otimizados, felizes, produtivos e belos. Nas redes sociais, somos curadores de uma self mitológica, um eu ideal esculpido para likes. Dunker alerta que essa performance constante gera uma angústia silenciosa, pois o sujeito fica esfacelado entre quem ele é e quem ele deve aparentar ser. O resultado não é a repressão clássica, mas uma exaustão subjetiva e uma dificuldade rad...

Psicanálise on-line: presença mesmo na ausência

A experiência analítica sempre se apoiou em algo fundamental: a criação de um espaço de encontro em que a palavra, o silêncio e os afetos pudessem ganhar forma. Tradicionalmente, esse espaço era o consultório — paredes estáveis, poltrona, divã, a ritualidade de sair de casa e dirigir-se até o analista. Hoje, cada vez mais, esse cenário tem sido substituído pela tela do computador ou do celular. Muitos se perguntam: seria isso uma perda para a psicanálise? Estaríamos empobrecendo a experiência? O que aprendi ao longo da clínica on-line é que a essência do trabalho psicanalítico não está no lugar físico, mas na possibilidade de criar um campo psíquico compartilhado. André Green, ao falar da função do “negativo” na psicanálise, nos lembra de que o vazio, o silêncio e até as ausências têm valor estruturante. No enquadre digital, esse negativo se intensifica: a imagem congelada, a conexão instável, os segundos de atraso entre uma fala e outra. Paradoxalmente, esses “vazios” podem se tornar ...

Entre o desejo de viver e a força que destrói

  Como psicanalista, vejo na clínica diária um dos sofrimentos mais intrigantes e profundos: aquele em que o próprio sujeito parece empenhado em voltar-se contra si mesmo. Este não é um desejo simples de desaparecer, mas uma compulsão ativa, muitas vezes silenciosa, que mina a própria vitalidade. Desde Freud, compreendemos que há algo em nossa vida psíquica que escapa à simples lógica do prazer. Em Além do Princípio do Prazer (1920), ele nos apresentou a ideia da pulsão de morte – uma tendência inconsciente, inerente à vida, que busca um retorno à quietude absoluta, ao inorgânico. Em meu trabalho, vejo esta força se manifestar não como um evento único, mas como um processo sutil e corrosivo: na autossabotagem que frustra o progresso, na repetição de escolhas dolorosas e, de forma mais aguda, nos impulsos que parecem desafiar o instinto de preservação. Em minha escuta, percebo que este movimento nunca acontece isoladamente. No modelo estrutural freudiano, que tanto ilumina minha prá...
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